DEUS castiga?
1. Os ventos da pandemia agitaram as águas e eis que emergiu este debate difícil.
Como a “ira de Deus”, a “vingança de Deus”, e também a Sua “justiça”, o “julgamento”, o “Juízo final” e ainda o “Diabo” e o “Inferno”, tudo isso são temas que colocam em stress os pregadores. Naturalmente incluo-me no grupo. Os fiéis, que o desejam ser, perguntam-se por onde avançar. Não poucos, generosos, julgam encontrar uma solução para o dilema na invocação evidente da bondade e misericórdia divina. Apaga-se rente o problema e não se fala mais em castigos. O problema, porém, é que deste modo têm de se apagar, também, páginas e páginas das Escrituras. E do Magistério. E dos escritos dos santos e dos místicos. E da música sacra e não pouca pintura e demais arte cristã. Na verdade, no fundo do coração do homem permanece a pergunta: porquê tudo isto? Como o velho “Omo que lavava mais branco” a declamação de palavras mágicas citadas de modo unilateral (portanto, não “católico”, expressão que quer dizer universal...) ilude a angústia. Apenas adiada, tenta-se exorcizá-la com slogans do tipo “vai ficar tudo bem”... Todavia, “abracadabra” não serve para resolver a densidade da dramaticidade humana e religiosa, como se vê no sortilégio de citações frívolas, apoucadas e demagógicas das grandes verdades bíblicas. Jamais “Deus é amor” pretendeu calar, disfarçar ou negligenciar “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”. Ser católico é não ficar apenas por uma das citações. Ambas são Palavra de Deus. Paradoxalmente, “há vezes em que a misericórdia castiga, e a crueldade perdoa” lembra-nos, ainda hoje, mais hoje, Stº Agostinho.
2. “Eppur si muove” teria (afinal não) dito Galileu quando obrigado a retratar-se. Mas a frase ficou. Hoje, por entre as coisas da doutrina, quantas vezes seria necessário citá-la quando o Poder impõe o discurso oficial do optimismo. “O pessimista e o optimista estão de acordo em não ver as coisas como elas são. O optimista é um imbecil feliz, o pessimista um imbecil infeliz. Há pessoas de boa fé que confundem a esperança com o optimismo. O optimismo é um Ersatz (substituição) da esperança, do qual a propaganda oficial se reserva o monopólio. Tudo aprova, tudo suporta, em tudo acredita. É, por excelência, a virtude do contribuinte. Quando o fisco o despojou até mesmo da sua camisa, o contribuinte optimista assina uma revista de nudismo e declara que anda assim por higiene, que nunca se sentiu melhor de saúde”(Bernanos).
Na verdade, o império do pensamento médio tem os seus interditos. Um deles é proibir afirmar-se que Deus intervém na história. Por vezes, tantas vezes, de um modo chocante. Melhor, de um modo crucificante. É que para além de ter intervenções simpáticas e consensuais, de bom tempo, a Providência manifesta-Se doutros modos que arrepiam. Sim, de facto, acontecem muitas coisas difíceis na história dos homens! Para quando libertarmo-nos de uma mentalidade que vê por aí “pegadas na areia”, quando já morreram mais de 160 000 pessoas e de Deus, uma vez mais, parece que nos damos conta, sobretudo, da Sua ausência?
3. Não me proponho, obviamente, ter um discurso que interpreta literalmente a Bíblia. Bem sei que nestas realidades nada é directo e linear. Mas isso vale seja para a recusa de fundamentalismos sectários, seja para a intransigência de quem se fecha à possibilidade de acolher neste tempo que estamos a viver um sinal providencial.
A propósito do mistério do mal disse certa vez Charles Journet: “Mistério ou contradição? A contradição é ou negar Deus, ou negar o mal. O mistério, por sua vez, afirma a coexistência dos dois abismos e não procura atenuar ou um, ou o outro, mas esclarece-os e aprofunda-os, um pelo outro.” Todavia, para dar esse uso razoável à inteligência há que perceber que Deus Nosso Senhor nos deu “a razão não para se adorar a si mesma mas, isso sim, para se dar”. Dar à verdade, à justiça, à ciência, à cidade, à família, ao que seja amor ‘edificante’. Ora, e se assim não ocorre, “a razão lança-se no absurdo se nega Deus. Mas lança-se doutro modo, também no absurdo, se nega o mal...”. E é, então, aqui que me situo: na posição que julgo católica. Essa de perceber que o Mistério de Deus nos colocou perante decisões que teremos que tomar perante o “mal” que nos está a acontecer e que parece derivar de outros males: do homem que violenta o mundo desequilibrando a “natureza” da criação. Mas também a “natureza” da sociedade e das pessoas, tantas vezes muito pouco “amigas” dos bébés que não nasceram ou dos mais frágeis na saúde e na idade. E no desentendimento “natural” de que uma família pede sempre um pai e uma mãe. E no que diz respeito ao trabalho e à riqueza, por vezes na busca de negócios & soluções (vacinas e leis rápidas na promoção do eu), mas raramente na procura de um sentido para a vida que inclua o abrir-se em liberdade ao Mistério na sua transcendência.
4. Com o melhor da tradição e do pensamento católico acredito que Deus é absolutamente inocente em relação ao mal. Inocente quer dizer que “não faz nada de nocivo”. Deus não faz mal! Lembro-me bem do meu espanto ao encontrar a frase de S. Tomás: “Deus não tem a ideia do mal”! “Se Deus não tem a ideia do mal — explicava a propósito Garrigues — isso quer dizer que não há n’Ele a matriz inteligível do mal. Deus não pode conceber o mal pois tudo o que Deus concebe cria-o: o ser [das coisas], o bem, a vida. As ‘ideias’ de Deus são a maneira pela qual as Suas criaturas participam nas Suas perfeições [por exemplo, a ideia de verdade ou de beleza faz-nos ter parte na Verdade e na Beleza divina]. O mal, em si, não “é”, e Deus não o pode conhecer através de uma ideia. Nada n’Ele corresponde ao mal.”
Perscrutando as Escrituras percebemos os prados verdejantes nos quais S. Tomás encontrou e reconheceu tais evidências: “Teus olhos são demasiado puros para que possas ver o mal” escreveu o profeta Habacuc (1.13). E sobretudo a assombrosa e subtil delicadeza de Lucas ao descrever os ultrajes apontados a Jesus na hora da Paixão: “Os homens que O guardavam escarneciam dele, espancando-O. Depois de cobrirem o Seu rosto com um véu, interrogavam-no, dizendo: ‘Profetiza! Quem te bateu?’” (Lc 22.63-64). Maravilhoso, neste mesmo sentido, o “comentário” de Fra Angelico, como que ‘tipo arte contemporânea’, ilustrando este episódio numa pintura do claustro de S. Marco.
5. Não me parece que quando caiu a Torre de Siloé e Jesus declarou tal acidente desligado de qualquer pecado da parte dos que aí morreram, ou quando o Senhor isentou os pais do cego de qualquer culpa, não me parece, dizia, que tais textos possam servir para argumentarmos, por outro lado, e noutro âmbito, que os pecados não têm consequências. Porque é disso que se trata: Jesus ensina repetidamente que os males e sofrimentos da vida não são, antes demais, castigo: são cruz. Porém, jamais dá a entender que o pecado não dá origem a sofrimentos e a males! De facto, e “falando adequadamente Deus não permite o mal. Permite a liberdade que o pode colocar no mundo” (Garrigues).
6. Daí que se possa falar também, e de algum modo, desta expressão difícil, “castigo” de Deus! Não no sentido de um gesto irracional e despótico do Senhor, mas, isso sim, de uma manifestação da Sua Providência. Porque a questão é esta: a Providencia de Deus está obrigada a servir-nos sempre ‘saúde’? Então, e se o Senhor nos quiser servir ‘salvação’? Alguém poderá perguntar “mas ‘salvação’ de quê?” Da nossa vã forma de existir! “É para vossa correcção que sofreis. Deus trata-vos como filhos; e qual é o filho a quem o pai não corrige? Mas, se estais isentos da correcção, da qual todos participam, então sois bastardos e não filhos” (Heb 12.7-8). De facto, e se esta pandemia for uma modalidade flagelante de nos resgatar do “pecado”? “Mas de qual pecado”, poderá ripostar o meu interlocutor? Daquele que acomuna China e América, Europa e África, Muçulmanos e descrentes, direita e esquerda, uns e outros. Esse, que nos faz colocarmos toda a nossa confiança nas elaboradas ou rudes “técnicas” e estilos de vida que nos fazem não precisar do Senhor Jesus! Da velocidade e pressa que nos faz não ter tempo para “estar” em família ou perante Deus, em silencio e adoração; da pretensão prometaica de refazer o homem, do principio ao fim da sua vida nas mãos de legislações perversas; da voracidade no prazer, do pânico face ao sofrimento, e o pavor da solidão ("Ninguém pode ser considerado maduro, enquanto não enfrentar a sua própria solidão." - Ratzinger); de uma ideia de Deus por demais ‘posterior’ às escolhas individuais, onde primeiro ‘experimentamos a vida’ e depois, quando muito, se Lhe pede a ‘relaxante ternura’ que considera odiosa, como sempre, a vi(d)a da Cruz!
7. Pergunto-me se tudo o que se está a passar não corresponde aos que no Livro do Apocalipse chama “flagelos”. “Os flagelos são enviados aos homens para compreenderem que que a associação com a revolta do Dragão e a edificação de Babilónia há-de conduzi-los à perdição. (...) São os homens que são “atingidos” na sua consciência e expectativas, quer dizer, interpelados ou até mesmo frustrados nos seus sonhos. O Dragão aposta muito no desejo latente dos homens de fundarem um paraíso terrestre, quer dizer, de gozarem aqui em baixo de uma felicidade total. Os flagelos divinos vêm regulamente meter em crise esta aspiração da humanidade que esquece que sem Deus não pode aceder á felicidade. Os flagelos são, portanto, ocasiões para os homens meditarem “em verdade” sobre a natureza exacta da condição humana. Eles são por isso oportunidade para os homens se converterem” (Philippe Plet). Porque o Deus da criação não desistiu do mundo. Chama-o a regressar, porém, e tantas vezes, através de um clamor que se faz ouvir apenas aos que estão atentos. Clamor esse que se levanta desde de dentro das fornalhas ardentes. Como tantas vezes Jesus o disse que "quem tem ouvidos, oiça”...
8. A terminar aqui deixo escrito o que vou repetindo aos que me são mais próximos: o “castigo” de Deus consiste, muitas vezes, em permitir que as escolhas de Israel sejam destrutivas, que as rivalidades e negócios nas republicas cristãs quebrem a unidade da cristandade, que a corrupção e os escândalos do clero obriguem a Igreja a reformar-se, que os pecados de cada um de nós tenham consequências que ferem os nossos próprios corações e a vida dos outros! Ou seja, que as nossas escolhas têm consequências que muito nos marcam, a nós e aos “vizinhos” das nossas escolhas.
No passado dia 27 o Papa Francisco afirmou que “o início da fé é reconhecer-se necessitado de salvação. Não somos autossuficientes, sozinhos afundamos”. Que grande abanão, este do Covid-19, chamando-nos a atenção para que assim é! Sim, sem Jesus “afundamos”. Ora nós bem sabemos que o Senhor não deseja castigar-nos, tão pouco que nos afundemos. De cada vez que nos reunimos para celebrar a Santa Missa dizemos reconhecer o único desígnio do Deus que nos guia, esse que consiste em “dar-nos a união e paz segundo a Sua vontade”. Acontece, então, que nessa hora de oferecer o Sacrifício a fé da Igreja nos confronta com o mais escandaloso dos paradoxos. Com efeito, se é legitimo colocar a pergunta e tentar esclarecer o que significa dizer “Deus castiga?”, mais relevante se torna enfrentarmo-nos com o que é absolutamente decisivo. Aqui chegados o que se nos pede é que acolhamos na fé o que nos revela a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. A saber, que é Deus, o próprio Deus, quem é castigado! E recorro a uma citação da discreta Raissa Maritain, que pretende ilustrar quanto acabo de dizer: “A imagem de Jesus crucificado é em Deus como que a expressão da dor, do que a dor pode ser na essência divina”!
9. Domingo da Misericórdia. Portanto, tempo de redenção, de libertação do pecado de modo a vivermos na gloriosa liberdade e alegria dos filhos de Deus. Obrigatório citar S João Paulo II que propôs esta festa para toda a Igreja! É dele a afirmação segundo a qual “o pecado é uma tragédia não tanto porque nos atrai os castigos de Deus, mas porque O repele do nosso coração (...). O castigo aparece assim como uma espécie de pedagogia divina, onde, todavia, a última palavra é sempre reservada à misericórdia: "Ele castiga e compadece-se, conduz ao sepulcro e dele faz sair; nada existe que escape à sua mão."
Por conseguinte, e em conclusão, aponto para a afirmação culminante do Papa devoto de Santa Faustina que serve de horizonte e de respiração para quanto aqui está escrito. Com efeito, no seu último livro surge a preciosa e precisa afirmação de que o limite imposto ao mal "é definitivamente a Divina Misericórdia". Limite intransponível, também, e agora, perante esta pandemia!
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