DEPOIMENTO

 

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12.3.2023

 

“A simplificação de qualquer coisa é sempre sensacional.”

“As falácias não se tornam menos falácias porque se tornaram modas.”

“Imparcialidade é um nome pomposo para a indiferença, que é um nome elegante para a ignorância.”

Chesterton

 

 

Ponto de partida:

Escrevo mandatado pelo meu compromisso com a Fé católica — e por isso com o mundo, a quem sou enviado a “Anunciar”. 

Acredito, na Verdade, por isso falo, procurando a Verdade.

Impõe-se-me a convicção de que não posso deixar de dizer. Com fé. 

Portanto, também com autenticidade e clareza.

Bem sei que “nem a minha pregação nem a minha vida estão à altura da missão que desempenho” (S. Gregório Magno).

 

2º 

Não fujo:

existem vítimas de toda esta abominável história de abuso de menores.

Há que dar-lhes o melhor e o devido apoio. 

Quanto me é possível, tenho participado concretamente, nesse dever da comunidade eclesial.

Obviamente, a Igreja deverá colocar todos os seus recursos, humanos e espirituais, na luta contra esta miséria. Para um cristão não poderá haver qualquer hesitação nesta matéria. 

Já não assim para o extremismo de esquerda e o esteticismo vanguardista. Os exemplos abundam.

À distância de um click descortinar políticos, jornalistas, escritores, artistas, promotores da pedofilia. 

 

A Igreja não pode cessar de se purificar.

Entrou numa demorada Quaresma da qual não poderá sair quando este tema deixar a pressão mediática. 

Purificar é uma expressão de sabor evangélico. 

 

Mas  “purificar” não significa, de modo algum, conformar-se aos ditados da comunicação social e à pressão da opinião publicada. 

Repudio o “travestimento” face ao mundo, que se julga dono da boa doutrina para a Igreja!

Com efeito, ajustar contas com a Doutrina e a Tradição não é “purificar”. 

Todavia, eis que não poucos espreitam a ocasião de pôr tudo em questão: a verdade objectiva; os sacramentos celebrados no vínculo do discipulado; o celibato associado ao sacerdócio e reservado aos homens — como amigos do Esposo, que O seguem e Lhe entregam toda a sua humanidade. Portanto, também a inteireza do seu corpo —; o casamento entre homem e mulher; a eutanásia — aí estão os temas perante os quais a pulsão “purista” pretende conformar tudo, face aos ditados do mundo.

 

Lobos ideologicamente treinados, colocados nos melhores lugares do anfiteatro eclesial, têm espalhado a confusão. Refiro-me, àqueles que são Poder e não abrem a boca sem projectar no Sacerdócio a sua ambição de Poder. Vejam-se os bons exemplos, de péssimos exemplos, vindos da Alemanha: os abusos sexuais percebidos como a prova de que é necessário “adaptar o ‘movimento religioso’ iniciado por Cristo” (Lamentabili, 59). Doutores plásticos face às novas exigências da sociologia e da psicologia. 

Pugnadores da doutrina e da pastoral decididas a votos. São os mesmos, aliás, que tentam capturar a intuição veneranda do Sínodo reduzindo-o a astúcias partidárias. 

 

Baudrillard distinguiu conceitos relevantes neste contexto: “Dissimular é fingir não ter o que ainda se tem. Simular é fingir ter o que não se tem.”

Dentro da Igreja, há quem dissimule não ter poder nenhum. Excepto — repito — o de publicar nos grandes jornais e possuir jornais online, e ser aqui e ali convidado para a Corte. Ou melhor, para a TV. São quem domina a agenda eclesial. Simulam, também, docilidade ao Evangelho quando o que se ouve é apenas mundo e tudo o que o mundo projecta sobre a Igreja. Reconhecem-se nesses que têm que começar os seus discursos com actos de fé “eu que, aliás, sou católico...”. Lançam-se no típico discurso dos escribas: encontrar a salvação, não na ignominia da Cruz, mas na adesão cidadã à opinião dos Príncipes. 

 

Pensar globalmente, agir localmente”!

Se olharmos com alguma amplitude para a história recente do papado verificaremos que teve de se confrontar com poderosas operações de oposição e mesmo de perseguição. De facto, e como grandes orquestrações da opinião pública, é de referir a tentativa de colar Pio XII aos nazis. Diz-se que teria que ver com a intenção soviética de condicionar o Concílio, impedindo-o de ser agressivo com a ideologia ali originada. Depois foi Paulo VI, óptimo Papa até 1968, terrível desde que publicou a Humanae Vitae. De seguida João Paulo II, fortemente atacado por causa da fixação da opinião pública na questão do preservativo. Acresce Bento XVI, sempre colado à imagem que trazia cosida à pele, de “panzerkardinal” e inquisidor. Hoje, habilmente, os “purificadores” apresentam etereamente todo o seu amor dualístico pelo Papa Francisco (esses mesmos que sempre desdenharam a devoção do povo católico a Pedro), não tanto para que ele apareça na sua autoridade apostólica mas, isso sim, para acusarem a cúria e os episcopados de mais não serem do que aparelho reacionário. 

 

Todavia, a grande novidade não desponta aqui, na critica a este ou àquele Papa, por causa disto ou daquilo. A estratégia de comunicação passou por internacionalizar a percepção pública da Igreja como “a” produtora da pedofilia. Por estes dias, alguém sem relevo público escrevia num jornal de referência um artigo com o título “O fim da Igreja Católica como referência moral”. Concordo! Está em acto, desde o final dos anos 90, esta operação “global” que se apresenta como anti-pedofilia e que visa cercar a Igreja. E apenas a Igreja. E é esse o propósito dos Príncipes. Simulado e dissimulado, “óbvio ululante”. Portanto, impedir que a Igreja tenha uma palavra limpa a dizer sobre o quer que seja já que, ela mesmo, é apresentada como a mais que desautorizada sede da sujeira... 

 

Em novembro de 2021 a Hierarquia da Igreja em Portugal propôs a criação de uma Comissão dita independente que realizasse um relatório sobre todos estes horrores. A Comissão é, indubitavelmente independente. Da Hierarquia. Mas isso não é, de modo algum, garantia de imparcialidade.

Verdade, também aqui, que “quem semeia ventos colhe tempestades”: aceitar a bondade inicial deste Relatório, a realizar por quem o fez, com as metodologias de que se serviram, prenunciava o que veio a suceder. Quando na passada 6ª feira, dia 3 de Março, se realizou a conferência de imprensa em Fátima, os senhores Bispos tentaram dizer que teria que haver respeito por “direitos, liberdades e garantias”. Mas as televisões e os jornais — e os Príncipes — queriam mais. Queriam a guilhotina. 

Pasme-se que, também o senhor Presidente da República mostrou uma valentia que lhe desconhecia

até ao presente momento do seu mandato, tantas as suas tangentes e circunlóquios.

 

10º

Pena, grande pena, pois, que a mesma Comissão, não se tenha apresentado a si mesma com franqueza e rigor. Por exemplo, qual o percurso exacto dos seus membros do ponto de vista de outras manifestações da perversão pedofila na vida das nossas instituições? Que tipo de dificuldades outros processos de índole idêntica criaram aos seus executores? Que pertenças e a prioris ideológicos os seus membros tem em relação à Igreja? Seria importante que Pedro Strech testemunhasse, em primeira pessoa, sobre as dificuldades que enfrentou no processo Casa Pia. Gostaria de saber o que o levou a abandonar tal processo. Do mesmo modo, não seria a hora da figura senatorial de Daniel Sampaio se referir às vítimas da Casa Pia com a “compaixão” que exige dos Bispos? Qual a sua intervenção cívica a favor da compaixão com as vítimas quando os tribunais deram por encerrada essa questão? Será que está agora a projectar sentimentos de culpa face ao seu silêncio nessa circunstância? 

Note-se, todavia, que limito-me apenas a levantar algumas questões!...  

 

11º

Por estes dias, o Cardeal Patriarca tem sido zurzido, fora e dentro da Igreja. A culpa dele? Ter assinalado que “um envelope sigiloso contendo os nomes dos membros da Igreja acusados de terem abusado sexualmente de crianças” (Público, 7.3.2023) não é uma sentença do Tribunal que deva transitar em julgado! O Público acompanhou a notícia com uma fotografia do D. Manuel Clemente a guiar dentro de um carro com a janelas fechadas e a sorrir. Tudo mensagens sobre fechamento, fuga, insensibilidade, passadas pelo Poder que se abate sobre um pastor bom a quem procuram isolar.

Acresce que, com mais ou menos dialética episcopal, D. Manual Clemente tem razão na precisão da argumentação jurídica: “Ainda está em uso a antiga terminologia da suspensão a divinis para indicar a proibição de exercer o ministério imposta como medida cautelar a um clérigo. É bom evitar tal designação, bem como a de suspensão ad cautelam, porque na legislação em vigor a suspensão é uma pena e, nesta fase, ainda não pode ser imposta. A forma correta para designar tal disposição será, por exemplo, proibição do exercício público do ministério” (in Vademecum, Vaticano, 2ª ed, 2022).

 

12º

Como já tive oportunidade de dizer noutra circunstância, a isenção e equilíbrio do Relatório tem que ser questionadas! Parece-me que a reverência que lhe é dedicada trás consigo um misto de servilismo e de convencionalismo. 

Não é um documento homogéneo. Se há relatos tremendos na sua veracidade, há outras páginas inaceitáveis do ponto de vista da racionalidade e, portanto, também da justiça. De facto, não acolho como imparciais as suas evidências. Por exemplo, na pg. 200 apresenta-se uma Tabela de quantificação de outros casos de pedofilia que seriam do conhecimento das vítimas que fizeram os seus depoimentos à Comissão: 

Assim, “delineámos um exercício de quantificação. Nos testemunhos em que as respostas são precisas e específicas, contabilizámos o número exato de pessoas mencionadas. Nos restantes, usámos uma série de equivalências que pondera as respostas de forma muito conservadora [Por baixo, digo eu]”. 

Portanto, é a partir desta Tabela que se chega à estimativa de 4815 vítimas.

Eis alguns exemplos que me parecem muito significativos, retirados dessa mesma Tabela:

Se a vítima que fez o seu depoimento dá uma “resposta exacta” (tal como a designa o Relatório) assume-se esse número sem mais: “todas as minhas primas” significam, seguramente, “7” raparigas. 

Acresce, que onde a vítima diz “não sabe; não sei” os cientistas do Relatório sabem e contabilizam “1”.

E o mergulho no arbitrário expressa-se mais exageradamente ainda, quando quem apresenta o seu testemunho à Comissão dá respostas do tipo “todo o colégio” (a que corresponde o número de 200 pessoas segundo o Relatório) ou “todos os rapazes da Freguesia” (a que correspondem 20 pessoas)... 

Ciência? Justiça? Aqui fica a pergunta.

 

13º 

Acresce que o Relatório não faz distinções conceptuais importantes: quais os abusos de menores que pertencem à categoria pedofilia (DSM IV, “actividade sexual com uma criança ou crianças na pré-puberdade — geralmente com 13 anos ou menos) e os outros—  que são igualmente “abusos de menores” — mas cuja “tipologia” tende a não poder ser nomeada? Tabus e interditos, auto-censura no vocabulário dos autores do Relatório ...

 

14º

Gostaria, ainda, de perguntar aos relatores: o que é que mudou tanto na sociedade portuguesa para que a descrição tenha imperado no processo Casa Pia (conhece-se algum Relatório? Está acessível uma única história relatada na primeira pessoa pelas vítimas?) e agora, desta vez, tudo fosse exposto, com todos os detalhes obscenos, em horário nobre das tv’s? 

Num país institucionalmente idóneo, o que foi recolhido neste relatório não deveria ter dado origem a averiguações subsequentes que salvaguardassem “direitos, liberdades, garantias”? Quem não se dá conta do julgamento sumário que se montou na praça pública?

 

15º 

Já perto do fim, penso que é relevante perguntarmo-nos se tudo isto significa que chegámos a uma nova fase da nossa vida em sociedade, onde o compromisso contra a pedofilia se apresenta firme? 

Diria que não me parece! Façamos, por exemplo, essa mesma pergunta ao Observador e verificaremos que a fixação no tema da pedofilia é exclusivamente anti-católico. Nesse mesmo jornal, em Janeiro passado, os 100 anos de Eugénio de Andrade foram festejados sem uma alusão que fosse à sua militância pró-pedofilia! Pelo meu lado, penso que até surgir de novo, nesse jornal, um número de telefone disponível para receber outrasdenuncias de pedofilia, que não só as eclesiásticas, o seu propósito parcial e o seu descompromisso anti-pedofilia estão ostensivamente à vista.

 

16º

Permito-me antecipar cenários: não tardará muito, parece-me que mais cedo do que tarde, será a Igreja Católica a única instituição, neste lado do mundo chamado Ocidente, a dizer que a pedofilia é uma perversão!

Quem acompanhe o que se diz, por exemplo, em França, Itália ou Holanda e Bélgica sabe-o. Em Espanha, em Setembro passado, a ministra Irene Montero disse que não havia mal na vida sexual activa das crianças, com adultos desde que consentida (https://poligrafo.sapo.pt/fact-check/ministra-da-igualdade-de-espanha-disse-que-criancas-podem-ter-relacoes-sexuais-com-adultos-se-houver-consentimento).

 

17º

Parece-me que reduzir as questões dos abusos de menores à Igreja católica tem permitido aos senadores e aos poderes do regime sublimar as cumplicidades e omissões no Processo Casa Pia. Ali, à guarda do Estado, guardas do Estado atingiram "as mais desgraçadas [crianças] em termos de história pessoal". 

 

18º

Ora ,o que é certo é que o “bode” tem mudado de nome, de raça, e o seu holocausto tem sido praticado através de rituais diversos. Todavia, certo é também que não há nenhuma configuração de sociedade que não faça uso abundante dos seus próprios bodes expiatórios de eleição. Carregar os miseráveis 3% de clérigos sinistros com os 97% de crimes de pedofilia que ocorrem na sociedade serve outro propósito que não o de esclarecer sobre o que se está a passar.

 

19º

Tudo o acabo de escrever apenas indicia uma atitude conservadora? Olhar para o que foi dito nessa perspectiva serve apenas para encurralar-me ideologicamente. Fechado e rígido, insensível, são, de imediato, ideias afins a este tipo de classificação. Permitem antecipar a conclusão sem ouvir o argumento.

 

Seguro, porém, é que não tenho nada a ver com os “jovens turcos” do Observador, importante club do conservadorismo liberal. Dessa relação promíscua resultou um jornalismo trans-tornado e grande conservador — do liberalismo. Na húbris da indiscriminação da incriminação. 

Por entre os militantes deste tipo de liberalismo (haverá outros) descortina-se a postura de quem luta para que o Estado esteja fora dos negócios ... e a Igreja longe da vida. 

 

Curioso: também aqui os extremos se tocam. Desta vez, no adro da igreja, onde as causas woke e os radicais do liberalismo se coligaram no comum desprezo pela densidade do real. Embriagados de parcialidade recusam-se a pensar a complexidade.

 

20º

Acontece que sou católico. Por conseguinte, a perspectiva que me interessa diz respeito ao “todo”: da vida, dos factos sociais, da amplitude do perguntar, da organicidade do real, da equidade das soluções, das relações reais de compromisso entre as pessoas, da busca de um modo de estar no visível que não silencie o invisível. Portanto, contra as soluções abstractas e ideológicas do sistema, das teses mais amadas do que as pessoas, do insignificância dada à questão do sentido da existência, do desprezo pelas instituições, da eminência do jornalismo acima dos factos, desprezando os factos, inchando ou esquartejando os mesmos. 

 

21º

Todavia, mutatis mutandis, não ando longe do pensamento de Adriano VI quando em 1523, perante a crise protestante, assim escreveu:

“Nós reconhecemos livremente que Deus permitiu esta perseguição da Igreja por causa dos pecados dos homens, particularmente dos sacerdotes e prelados. 

A mão de Deus, de facto, não se retirou e ela pode salvar-nos. 

Mas o pecado separa-nos d’Ele e impede-O de salvar-nos.

Toda a Sagrada Escritura ensina-nos que os erros do povo têm a sua fonte nos erros do clero... 

Sabemos que, desde há muitos anos, também na Santa Sé foram cometidas muitas coisa abomináveis: tráfico de coisas sagradas e transgressões dos mandamentos em tal medida que tudo se tornou um escândalo. Não nos podemos espantar que a doença tenha descido da cabeça ao corpo, dos papas aos prelados. Todos nós, prelados e eclesiásticos, desviámo-nos do caminho da justiça. (...)

Cada um de nós deve honrar a Deus e humilhar-se perante Ele.

Cada um de nós deve examinar-se e ver em que pecado caiu.

E deve examinar-se muito mais severamente de quanto não o será por Deus no dia da Sua ira.

Consideramo-nos tanto mais comprometidos a fazê-lo porquanto o mundo inteiro tem sede de reforma”.

 

 

 

1 comentário:

  1. Muito bom e esclarecedor. A Igreja é um alvo a abater há 2 mil anos. Os mata frades estão de volta. Que Deus nos ajude.

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