Quarta-feira de Cinzas

 

A vida.

A vida não tem só um lado: o meu lado, o lado de cá, o que eu penso, o que eu imagino, o que eu projecto.

Se assim vista a coisa, “o inferno são os outros” (Sartre), sempre a impedirem-me de me afirmar e de me expandir. De algum modo, todos os extremistas pensam, ou melhor, reagem ‘pensando’ assim. E, no entanto, “todo o extremismo destrói o que afirma” (Zambrano). Todos os que só gostam do que eles mesmos pensam, isolam-se e, curiosamente, sofrem de uma subtil modalidade de covardia: essa de acusar, denunciar e insultar o outro, ver todos os seus defeitos mas sem o mínimo de arrependimento apontado ao seu lado, ao seu coração, à sua in-consciência e in-consistência. Toda a coragem contra os outros e nenhuma coragem no reconhecimento de si mesmo. Os que falam do direito ao aborto, ou da compaixão que se ‘manifesta’ na eutanásia, penso que andam por aqui. Mas também, atrevo-me a dizer, obviamente salvaguardadas as devidas e importantes distâncias, e noutro âmbito completamente diferente, também os que acham que a única Missa válida é aquela que é celebrada “a meu modo”.

 

Rasgai os vossos corações” dizia-nos na Primeira Leitura o profeta Joel. Diferente de estarmos sempre de espada em riste para rasgar o coração dos outros. ‘Rasgai os vossos corações’ é bem diferente de andarmos a rasgar o coração dos outros 

 

Tão pouco, a vida, de modo algum, é um exame contínuo que me está a ser feito, onde a única coisa que se me pede é que eu ganhe, que alcance objectivos, que fabrique uma existência extraordinária, uma existência compensatória. Se consigo, sou top, sou excelente, se não consigo deprimo e desespero. Aliás, num certo ponto de vista, não gostar de si mesmo é, finalmente, sinal de alguma falta de humildade. “O desencorajamento é também um orgulho” dizia Stª Teresa do Menino Jesus.

 

A vida.

Se a vida não é ficar só do meu lado, também é muito importante dizer que não há duas vidas. 

Por um lado, a vida que interessa, onde lutamos como os outros (por exemplo, pelo prestígio ou dinheiro), onde pensamos como os outros (por exemplo, sobre as questões ditas fracturantes), onde somos ambiciosos das coisas do mundo e tímidos e apoucados nas coisas da fé. No mundo somos interessados e lutadores, na religião é-nos suficiente que se fale muito de ‘amor’, que se esfregue tudo com ‘amor’, dissipando qualquer referência à Cruz. 

A alienação, é estar num lugar sem relação com o outro lugar: no trabalho sem o Evangelho, no estudo sem a inquietação pela Verdade, no desporto sem a lealdade, na família sem a decisão pela dádiva pessoal, no tempo livre, e em tudo aquilo que eu chamo ‘meu’, sem inquietação pela vinda do Rei e do Seu Reino. 

 

A vida.

DEUS NOSSO SENHOR deu-nos — dá-nos — a vida para O conhecermos, O amarmos e O servirmos. 

E porque nos distraímos e dissipamos, porque nos fechamos e somos perdulários, Deus dá-nos o tempo para nos “reconciliarmos com Ele”. Portanto, dá à nossa vida mais esta Quaresma, para nada de outro senão para nos “reconciliarmos com Deus”. Assim o dizia S. Paulo na 2ª leitura.

 

Eis-nos em 4ª feira de Cinzas.

Este é um tempo que nos é dado não tanto para nos fixarmos nos defeitos do mundo mas, isso sim, nos truques e no fechamento dos nossos corações. 

A ideologia, todas as versões de todas as ideologias são esse ver o mundo não na sua consistente e objectiva realidade mas na efabulação, na trepidação e emoção subjectiva que é inventada pelo ‘meu’ apetite. A ideologia é ver o mundo como o vê o ‘meu’ apetite, pondo em causa tudo o que está contro o ‘meu’ apetite: a tradição, as convicções da comunidade, os outros, considerados como adversários e como os inimigos e que tem de ser destruídos em vez de se procurar a reconfiguração de si mesmo. Claro que por apetite refiro-me ao rancor contra o real e o fascínio pelo sonhado.

 

Nada mais cristão, porém, do que o pôr-se em questão a si mesmo. Os fracos, os covardes, os que não tem amor à verdade, são esses que estão sempre a pôr em questão Deus, a doutrina, e a fé, a denunciar Deus que não se mostra. 

Ao contrário o nosso grande exercício não é estar sempre a descobrir nas coisas razões para não acreditar em Deus. A nossa posição católica faz-nos ver nas coisas, e nas coisas todas, isso sim, razões para suspeitarmos do nosso amor próprio. Nada mais cristão do que pôr-se em questão a si mesmo.

 

A Quaresma não será este tempo oportuno para nos fixarmos na meditação do 2ª mandamento: “não farás para ti imagens falsas”? Eis todo um programa para a Quaresma. Imagens de ti próprio, da tua vida da vida, dos teus sonhos, e delírios, acusações e fantasias, corrupções sempre reconhecidas nos outros ou, se descobertas em ti, vistas não em humildade mas em desespero e desconsideração pelo que Deus te deu.

 

Sim, na história recente do mundo houve visões ideológicas muito fortes que levaram para fora da Igreja muita gente nas últimas décadas. Pessoas que diziam que a Igreja que não intervém no mundo, não faz revolução no mundo, que a Igreja exige demais na moralidade íntima, que não é suportável o que a Igreja diz nessas matérias e, mais recentemente, que a Igreja apenas dá escândalos. Outros ficam por cá mas ‘divorciados’: de boa consciência em relação aos adultérios cometidos com o mundanismo, sempre na invocação da bondade e da misericórdia do Senhor mas para não obedecer a Deus. E de novo cito a 1ª Litura: “Convertei-vos a Mim de todo o coração”.

Perguntar pela verdade dá esse grande fruto, o pôr-me a mim em causa.

Perguntar pela verdade põe-me a mim em causa.

 

A vida.

A vida espiritual. O Evangelho diz-nos que há uma vida que depende deste facto: de levarmos a sério Cristo, a Sua Palavra, e o dom que nos faz de O conhecermos e Ele mesmo.

 

O desejo é o motor da vida espiritual. Mais não é qualquer desejo. Mais ainda, o desejo diz da profundidade da vida espiritual. 

O que é nos move, o que é que nos faz estar aqui a assistir à Missa, o que nos faz rezar, porque é que fazemos peregrinações, porque é que lemos livros religiosos, porque é que damos atenção aos padres? Qual seria o motor da nossa vida espiritual, senão o desejo? Seremos pessoas, penso eu, que de alguma maneira estão em censura de si mesmos, em castração de si mesmos, pessoas que ainda não se conhecem a si mesmos, o que Deus lhes deu, se não nos permitimos o desejo. Deus deu-nos o desejo para que Deus esteja mais perto da nossa vida. O desejo é sinal de que ainda não chegamos mas que queremos chegar. Qual seria o motor da nossa vida senão o desejo? Estamos aqui por causa do cumprimento de deveres? Para corresponder a um código de ética? Por causa de culpabilidade de cada um de nós? Por medo? Por culpa? Para receber de Deus dádivas que Ele tem obrigação de pôr na nossa vida? Bem sabemos que não. Obviamente que o dever, a moral, as culpas, o medo são realidades importantes da vida humana. Obviamente que suplicamos a Deus que tenha misericórdia de nós, tenha misericórdia dos nossos. Mas nenhuma destas realidades atrás elencadas poderá ser enfrentada com coragem e sabedoria se não temos uma relação viva com Deus. (Kuby). Eis a nossa vida espiritual: a nossa relação viva com a vida de Deus. Como em toda a vida de relação desejamos o outro. E o encontro com ele preenche-nos ou não. 

Era disso que nos falava o Evangelho. Jesus convidava-nos a deseja-lo mas de uma maneira que nos preencha. Essa maneira que tem estes três sinais de autenticidade. Deseja-lo com a autenticidade do nosso silêncio, chama-se a isso oração. Desejá-lo com a autenticidade da nossa generosidade, chama-se a isso esmola. Desejá-lo com a autenticidade do nosso autodomínio, chama-se a isso jejum.

 

A falta de vida espiritual gera vulgaridade e frivolidade, egoísmo e violência. O outro já não como alguém a descobrir ou a encontrar. O outro como o que me causa inferno porque não me permite tudo o que eu quero.

 

Tem se falado da pandemia como de uma Guerra. Melhor fora se disséssemos que este é um tempo como que de prisão, de ditadura e clandestinidade. Sem nos podermos mover em liberdade. Sem podermos estar onde queremos, com quem queremos. 

Mas não que tenhamos de ser derrotados.

 

O que está em causa não é a Igreja nas suas acções mas na sua fé.

O cardeal de Bolonha, Giacomo Biffi, dizia que devemos preocuparmo-nos em acreditar, não em ser credíveis. A exigência de sermos credíveis deu a volta á vida da Igreja. Embora a coisa em si mesma seja justa não se deve tornar um objectivo e muito menos um método. Caímos no culto da aparência, da utilidade, da coerência se deixamos de testemunhar Deus, e estamos sobretudo preocupados em aparecermos nós... (Franco Baroncinile)

 

 

 

Este é um tempo para a Igreja dizer o essencial: precisamos de Deus, precisamos da vida que Deus nos dá na santidade de Cristo, nos sacramentos de Cristo, na vida de Cristo

 

Obviamente que quem sofre por causa da falta de comunhão, já comunga. Quem percorre a cidade no silencio e regressa a casa fazendo memória de Cristo, já comunga. Quem vai à Sua Palavra com ardor e demora, comunga. Quem apesar de tudo sai para partilhar, inventa maneiras de estar presente, não esquece os outros e oferece, comunga e comunga muito com a caridade de Cristo.

A maior doença da alma é o frio” (Clemenceau). Bendito seja Deus por todo o fervor que esta ausência da Eucaristia tem gerado.

 

E no entanto, o “realismo eucarístico, da presença real de Jesus na Eucaristia, gera o realismo eclesial: estes dois realismos apoiam-se um sobre o outro, são a garantia um do outro” (Lubac).

Na verdade, o acto de receber o corpo de Cristo e de simultaneamente sermos recebidos por e como Corpo eclesial de Cristo é isso que está em questão. Somos um Corpo articulado, melhor unificado só e por causa da recepção da Eucaristia e inversamente o corpo... . Só teremos unidade se ela nos for dada por Jesus, entrando no Corpo de Jesus, sendo Corpo de Jesus. Com efeito, chamamos Presença real Jesus à Sua presença na Eucaristia, na Hóstia Santa, também porque esta presença de Jesus na Eucaristia não só é real como é realizadora, realizante, geradora do Corpo de Cristo na história, a Igreja. 

 

A vida. 

Deus deu-nos este tempo de tantos constrangimentos e aflições para voltarmos a fazer uma grande quaresma de preparação não para a Primeira Comunhão mas tão somente para a Comunhão. 

Termino, o ano passado alguns de nós celebramos a 4ª f de Cinzas em Caná da Galileia. Ali Jesus deu vinho em abundância ao mundo, à Igreja, aos homens para que nunca falte no mundo, na Igreja, nos homens a Sua aliança. “Este é o cálice de uma aliança nova e eterna”. Ali também Nossa Senhora, em nome de todos os crentes, disse-nos o que é preciso fazer nas horas de crise, nas horas de ‘falta’, quando parece que tudo é carência. Eis-nos que temos o método e o método vencedor para todas as pandemias e para todas as crises na existência e na vida: “Fazei tudo o que Ele vos disser”.

 

 

 

 

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