2ª SERMÃO SEM MISSA

1. As leituras do Ano A são fundamentalmente um percurso catecumenal, a pensar naqueles que (quando não há pandemias...) são baptizados na noite Santa da Páscoa. Para todos os outros são também uma oportunidade de revisitarem a história dos seus corações: da suas sedes e do Dom de Deus (Jo 4), das suas cegueiras e da Luz (Jo 9), das mortes que trazem em si e da Vida com que o Senhor os salva (Jo 11).

2. Para ver o homem sabe que dispõe dos olhos da razão. Esta foi sendo cada vez mais entendia como o exercício da inteligência a controlar e medir tudo. Tudo? Parece-me que mesmo até isso a que hoje se chama vulgarmente inteligência emocional outra coisa não faz senão colocar o Eu, e a sua frieza racional, ou calor emotivo, no centro do universo.  

3. Para os cristãos é essencial que a racionalidade tenha um nexo com qualquer coisa que é outra em relação ao que é o Eu. Mede-se a razoabilidade de cada um pela relação da sua inteligência com o real. Quando a razão a recusa chama-se a isso tontaria, preconceito, fantasia, paranoia, irrealismo e por aí fora. Se a recusa da razão em abrir-se ao tamanho do real for mais esquemática, articulada e argumentada chama-se ideologia.
A ideia de que todo o real cabe na matemática, ou que pode ser colocado dentro de modelos científicos, é um importante lugar comum. Todavia não é toda a realidade que é científica mas, isso sim, toda a ciência, que, quando o é, é real. A ciência é, portanto, uma das aproximações possíveis à realidade mas nem a única, nem total (palavra já muito próxima de totalitário...). A ideia de que o real é compreensível, isto é, apreensível e colocável dentro de conceitos, sistemas, modelos abrangentes, ou o mais que seja, passa por cima de uma das dimensões mais fascinantes do real. A saber, o seu mistério. Ou seja, a inexpugnabilidade das coisas, que evocam sempre outra Coisa... E isso bem o sabe qualquer artista digno do nome. Mistério não é igual a absurdo. Mistério quer dizer que o real não está disponível à pretensão colonizadora e imperialista do Eu. Mistério quer dizer que posso visitar mas não domesticar o real. Toda a ideologia é pretensiosa. Pretende sempre por uma coleira e trela no real. Os nomes serão outros mas a intenção é a mesma: aproveitar a força e a utilidade das coisas através das ciências e tecnologias; das múltiplas redes de comunicação social; das ideologias politicamente correctas; das práticas narcísicas da ética da acusação, como se viu nas manipulações em torno da pequena Greta, ao viés de todo o que a civilização greca-cristã nos legou (parece não mais ser necessário conhecermo-nos a nós mesmos, não no sentido psicológico de contacto com as nossas emoções mas, isso sim, de uma grande desconfiança das ilusões de que o Eu é capaz, nem necessário tão pouco convertermo-nos nós mesmos, sem nos fixarmos em acusar e impor mudança aos comportamentos dos outros). 

4. Aqui chegado, parece-me que devo chamar a atenção para que eu próprio tenho consciência de que muitos destes percursos são conduzidos pela pressão social. As massas, as multidões, são sobretudo, como ovelhas sem pastor. E geralmente têm um pensamento prensadovendo o que  a maioria e não vendo o que não  a maioria. Gente com estudos, ou sem eles, fazem coisas e mais coisas mas sem (se) pensarem! Com efeito Porquê? e Para quê? são os grandes tabus do homem prático e técnico que se tem por muito mais desenvolvido do que os antigos. 
E lembro a esse propósito, e paradoxalmente, a clarividência penúltima de Bernardo Soares — aquele tipo de lucidez que se põe à defesa, e que recusa sofrer(-se) em demanda, e portanto, sem ser capaz de suplicar! — ao recusar fazer a pergunta. Bem descreve, o heterónimo de F. Pessoa, o atavismo e comodismo de uma época que julgo se estende até hoje: Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido — sem saber porquê...Por tudo isto, enfim, creio que a utilização da inteligência para tarefas penúltimas e calculismos vários nos coloca civilizacionalmente muito perto da parábola do Filho Pródigo: Pai dá-me a inteligência e a capacidade de fazer bons negócios mas longe de ti... Quanto ao resto logo se verá!

5. Mas eis que chego, então, e finalmente, a Jo 9 e à cura do cego de nascença.
Na verdade, parece-me que este episódio nos põe frente a frente ver e não ver
De algum modo confronta-nos, também, e retomo o que aflorei mais acima, com o que comummente se chama o conflito entre a fé a ciência, ou a fé e razão. Não como discussão abstracta e teórica mas “coisa" bem mais dentro desse território onde vivemos e nos movemos e que se chama liberdadeLiberdade, ou falta dela, no fechamento desse posto fronteiriço onde nos pretendemos soberanos e o Eu define o que é o real em vez de o acolher. Com efeito, Jo 9 diz-nos que o mapa destas questões, ver e não ver, ter fé ou recusar a fé, por causa da razão ou por outra razão qualquer, passa, sobretudo, pelas decisões do dia a dia, pelo escolher soluções farisaicas, ou pela pobreza de coração. Essa orientação da existência da qual Jesus fez uma Bem-aventurança. Ora ser pobre de espírito não rima com ser cretino. É pobre de espírito quem tem pouco apreço de si. Ao contrário, é rico de espírito o que tem em grande apreço a si mesmo e é soberbo porque não cumpre o mandato de Cristo: "se não vos converterdes e vos fizerdes como crianças não entrareis no reino dos céus". Quem, já convertido, se tornou como uma criança, esse é pobre de espírito." (Autor anónimo do séc IV). A esta pobreza de coração também poderíamos chamar liberdade interior, humildade autêntica, inquietação disponível, coragem para sair como Abrãao...  

6. Perguntado por quem tem culpa na cegueira biológica do Homem colocado perante Ele, Jesus remete para outra questão, que diz respeito à cegueira espiritual. O que está aqui em questão é a cegueira do mundoEnquanto Eu estou no [teu] mundo sou a Luz do [teu] mundo (vs5). Faço notar que o pronome pessoal na 2ª pessoa foi colocado enfaticamente por mim. Serve-me para perguntar como pode haver Luz se Jesus não está no [nosso] mundo? A talhe de foice, recordo a velha pergunta feita ao rabino: Mas afinal onde está Deus? ao que este responde Onde tu o deixas entrar...
Bom, esta cegueira do mundo é de nascença e chama-se pecado originalver o apetecível fruto de qualquer árvore que seja (carreira & prestígios, dinheiro, ganhar, sempre e esconder fragilidades, apetites sexuais sazonais à solta, vida sem obediência e cruz, autossuficiência...) esquecendo deliberadamente o apelo que o Amável Senhor dono do pomar dirige à nossa liberdade... 
Daí que — e sublinho este dado de fé, desde a origem, por pecado de soberba, o homem não quer Deus! (Permito-me dizer, como na gíria, que o que ele quer é dar na fruta...) — em Jo 9 se insista muito neste tema que é único em todas as Escrituras: a cura de um cego que o é desde a sua velha nascença. Velhice essa depois resgatada no gesto re-criador de Cristo ao re-fazer, cuspindo no chão para, de novo com barro, recriar o homem que [O] ... Acresce que a saliva nos vem da boca... assim como as palavras! Ora do próprio interior de Deus veio, e vem, Aquela Palavra que disse e assim se fez... (cf Gn 1). Donde podermos concluir que acolhendo a Palavra de Cristo seremos curados e passaremos a ver: na intenção de Cristo!

7. Mas parece-me que é necessário fixar-nos um pouco mais demoradamente no grande enfrentamento entre Jesus — mais o seu discípulo que antes fora cego e que, como todos os discípulos, vive agora a graça imensa de re-ver tudo a partir do encontro acontecido face à face com Cristo e a Sua Palavra — e os fariseus.
Espectáculo impressionante este: recuperar a vista é depender de Jesus para descobrir Jesus — primeiro nomeado como um homem (vs 14) , depois como Profeta (vs 18), depois, ainda, como um homem que vem de Deus (vs 33), e finalmente como Senhor em quem ele acredita (vs36). Mas acreditar em Jesus, ver, é também ser colocado perante o grande mistério das trevas e impiedade! A realidade com que o ex-cego depara é ver Cristo no mundo, aqui onde pecado e a cegueira são escolhidas e orgulhosamente defendidas por aqueles a quem o Evangelho chama fariseus.

Que gente é essa, de quem se trata? São aqueles que declaram na presença da Luz vinda no mundo: nós vemos (Jo 9.41) e que afirmam que são livres (Jo 8.33)( H. Schelier); gente que não evolui interiormente; que regressa sempre à mesma indisponibilidade face à realidade (nos vs 15, 17 e 26 as perguntas são redundantes, não se interessam pelo facto mais isso sim em calcular prejuízos. Como quando o jornalista não quer ouvir o entrevistado mas apenas entalá-lo...); gente que se defende e que quer expulsar Jesus dali e que se apressa a apagar os rastos da evidencia: os judeus não quiseram acreditar [no facto] que ele fora cego...; e que expulsaram também a testemunha da obra de Jesus (vs 22, 34 e 35), esse mesmo Jesus que inaugurara o Seu ministério a expulsar de dentro do templo que existe em cada um de nós o tráfico de mentiras (Jo 2.15). 
De facto, como havemos de acreditar se não aceitarmos que Jesus denuncie os calculismos e egoísmos do nosso coração se não acolhermos o testemunho dos que foram libertados das suas cegueiras? O pecado é pretender vermos o que não vemos; é legislar cientificamente sobre o que não conhecemos... nem queremos muito conhecer, se não teríamos que entregar a chave do nosso coração a Outro! 
Quem conhece Deus senão o que vem de conversar com Jesus? Como pretender conhecer Deus ficando ao longe a observar como acusar Jesus — ou a Sua Igreja? 
Leonardo Castellani, padre particularmente perseguido e ferido por causa do farisaísmo, descreve-o assim: A flor do farisaísmo é a crueldade: crueldade assolapada, cautelosa, lenta, prudente, e subterrânea.

Portanto, os fariseus são essa gente que queria tudo menos um milagre, ou qualquer sinal, que desarticulasse a sua ideologia que, como todas, pretendia ser maior do que a realidade. Gente, então, que perante a experiência da graça respondia com, mais ou menos, assumida paranoia, cálculo e desconfiança.... De facto, há responsabilidades próprias no grau de cegueira em cada um de nós milita e o que é mais doloroso, ainda, no grau de fechamento dos que nos são queridos. Converter-se, não se converter, tem sempre que ver com uma escolha tremenda: mando e imponho-me Eu, e assim calo o real, ou manda o real e começo eu a dizer outras coisas, mais humildes e disponíveis?...

8. De facto, toda a crise de inteligência tem o seu fundamento no abandono da procura da verdade. Enquanto a alma a procura está voltada para a luz. A própria inteligência foi criada por Deus apontada para a verdade. E o próprio da inteligência humana é, portanto, procurar a verdade. Logo que ela renuncia a tal procura cai imediatamente sobre a influência das trevas. A maneira mais habitual de praticar uma tal renuncia consiste em parar o movimento do pensamento nos seres e nas coisas que povoam o mundo. A inteligência que não procura ir mais além do que aquilo que controla, colocando a questão do Porquê? da criação, é uma inteligência que renunciou à verdade. Ora renunciar, mesmo que seja a uma parte da verdade, é renunciar à verdade tout court! (Philippe Plet)... 
Pelo meu lado, permito-me acrescentar um outro subtil e perverso sinal de renuncia à verdade. Penso nos perigos do contentamento com a honestidade própria. Com efeito, com esse olhar para mim com complacência, seja por causa dos trocos, seja nas contas grandes, isento-me de ir procurar fora da mim. E, todavia, a Verdade não são trocos nem números grandes, mas um caminho para uma morada e comunhão com a vida de Cristo. E que só a poderei encontrar se sair, na demanda de um lugar que se define por ser a morada dOutro. Lá Eu mesmo sou apenas e sempre um convidado. Não o dono da operação. Aí o homem senta-se, ajoelha, prostra-se ou cumpre com um qualquer outro gesto que significa sobretudo isso: que deixou-se de atavismos, comodismos, ou quaisquer outras rotinas psicológicas em torno das suas propriedades privadas, estando ali para receber na Palavra a possibilidade de Ver: aí, de novo, e definitivamente, interrogado pela misericórdia de Cristo — Que procurais? (Jo 1.39) — ele acolhe e guarde esta pergunta divina, pergunta esta que é já uma resposta à sua história de recusas.

9. Creio que é necessário não esquecer que este tempo de pandemia — que assim desejamos, será proximamente resolvida pelos médicos e demais profissionais chamados a enfrentá-la — traz consigo a agudeza de uma pergunta maior ainda: Que mistério é este da vida? Qual o seu propósito? Com quem escolhemos con-viver? Quem escolhemos para nos ajudar a viver? De quem vamos cuidar? 
No Evangelho deste Domingo, uns tentaram dizer que não precisavam de Cristo para ver o que está acontecer, outro (e nele revemo-nos nós mesmos) descobre que é Cristo, e só Cristo, que o faz ver! Na verdade, somos cristãos! Quer isso dizer essencialmente que precisamos de Cristo para ver Deus-connosco e que precisamos de Deus-connosco para não mentirmos à vida e não expulsarmos os sinais da Cruz e da sua salvação a actuar no mundo.  

10. E concluo com uma referencia à superabundante graça da peregrinação que fizemos há cerca de mês (!) à Terra Santa com o Vale de Acór. No ultimo dia, nas horas livres que cada um disponha, alguns de nós fomos visitar as vastas escadarias do Templo voltadas para sul. Por lá estão, bastante bem preservadas, embora, evidentemente os seus degraus mostrem diversos estados de conservação, uns mais antigos e desgastados, outros claramente restaurados em data recente. Certo é que tudo indica que terá sido por ali que se desenrolou o episódio do Evangelho que hoje foi proclamado nas Missas, onde as há... 
Acresce que estivemos nessa fachada sul do templo num Domingo à tarde todo inundado de luz. Ainda longe do ocaso no Ocidente, parecia que todo o sol estava como que voltado para nós. Pedras antigas aquelas, que por ali estão há muitos séculos. Logo em frente, e para baixo, seguia o caminho que levava à piscina de Siloé. Não mais do que uns 20 minutos a descer. 

Da visita a tal lugar retive o entusiasmo que foi para nós estarmos num lugar que o Senhor viu e cujo chão pisou. Acresce que não é difícil transpor o que ali nos foi dado em abundancia passando-o para a nossa própria experiencia de fé: degraus por onde nos movemos, lembrando-nos das subidas e descidas das nossas vidas, desafiando os dias nesse bom combate de sermos firmes na decisão de ir em busca de Jesus; 
Mais a ordem que Ele continua dar à nossa cegueira para nos lavarmos na Piscina que purifica, comparada pelos santos com a primeira descida ao baptismo e, depois, com o retomar humilde da celebração da confissão;
E a luz e mais luz, não obstante os dias de mau tempo que vêm vindo a caminhar em direcção a nós, essa Luz que é sinal do Evangelho, do Evangelho que é Jesus a curar-nos a dar-nos comunhão de vida e coragem com Ele, como o cego redimido;
E ainda essas pedras imensas que aguardam e desafiam a eternidade sem pressa, nem traição, lembrando-nos que o fundamento imperecível o rochedo firme, é o Ámen que Deus nos disse em Jesus. 

Bom, o episódio de Jo 9 quase termina com Jesus a dizer para cada um de nós que O procura na autenticidade do seu caminho de fé: Tu já O viste e é Ele que está a falar contigo. (vs 37)! Bem ao contrário dos que perguntavam logo no começo Onde está Ele? (vs 12), nós somos daquela raça bendita de cegos que sabe onde Ele passa e mora e, por isso, não cessam de andar a esmolar nas escadas da Igreja para ver, sem reivindicar nada, desejando apenas que nos seja dado estar lá quando o milagre acontece. Esse de nestes tempos de muita perplexidade vermos crescer a comunhão com Ele na , na Sua soberania sobre a história, na Esperança, de ser assim na terra como no Céu e da Caridade, nos riscos de vivermos em atenção cuidado e dádiva, assim como Ele nos amou e ama!
Amén. 

P. Pedro Quintela



















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