Texto lido no Homília de 19 Fevereiro 2023

Sobre os pedófilos.

 

1

 

7 Quando for julgado, que ele saia condenado, o seu pedido seja mais um crime.

8 Que os seus dias de vida sejam limitados e que outro se apodere da sua função!

9 Que os seus filhos fiquem órfãose a sua mulher fique viúva.

10 Que os seus filhos andem errantes a mendigar e a procurar por entre as suas ruínas.

11 Que o credor lhe retire todos os seus haveres, e os estranhos o despojem do fruto do seu suor.

12 Que ninguém tenha compaixão dele nem se compadeça dos seus filhos órfãos.

13 Seja exterminada a sua descendência, e o seu nome apagado na geração seguinte.

14 Que a culpa de seus pais seja recordada ao Senhor e jamais se apague o pecado da sua mãe.

15 Que o Senhor os tenha sempre presentes e extermine da terra a sua memória».

16 Visto que não se lembrou de agir com misericórdia, mas perseguiu o pobre e o desvalido e o de coração atribulado, para os matar.

17 Preferiu a maldição: que ela venha sobre ele! Não procurou a bênção: que ela se afaste dele!

18 Que ele se vista de maldição como um manto; que ela entre como água para o seu interior

e como óleo penetre nos seus ossos. [Trad. CEP]

 

Assim diz um dos salmos chamados imprecatórios. O 109. Imprecar quer dizer rogar pragas. Trata-se, porém, de um daqueles salmos que depois da reforma dos anos 60 deixou de ser rezado na liturgia com medo de ferir os ouvidos mais pudicos. Não cometo a demagogia de dizer que este salmo aponta aos pedófilos. Antes, à aguda consciência de que existem inimigos. E que o pecado tem um poder tremendo como inimigo. Rezar hoje este salmo expressa a nossa consciência de que temos que enfrentar um tremendo inimigo: o pecado desfigurador de tudo. O pecado entendido como ódio e decisão contra o homem como imagem e semelhança de Deus.

 

Que a justiça dos homens faça o seu caminho, é o desejo recto de qualquer um de nós. Certamente que alguns dos mais dissimulados e poderosos pedófilos escaparão à justiça dos homens. Assim, muitos nomes grandes da cultura e das artes europeias e nacionais contemporâneos. 

[...]

Sabemos, no entanto, que ninguém escapará o severo juízo de Deus. Para o fogo eterno aqueles que escandalizaram os pequeninos. Portanto, também o clero que impenitentemente assim o fez e assim se manteve simulando exercer as responsabilidades santas, horrivelmente pervertidas. 

 

2

 

Dediquei-me a ler o Relatório publicado na 2ª feira passada. Já li perto de metade. Não serei redundante a repetir o que é consensual, obviamente sobre a tragédia que se abateu sobre quem foi abusado.

Mas o Relatório não é apenas consensual. É também discutível. Muito discutível e em não poucas páginas, para mim, inaceitável. Ou será que sou obrigado a considerar como absoluta e inquestionável a sua metodologia, os seus propósitos e resultados? “Pensar é dizer não” [Alain, seminário de Derrida], ensinava um filosofo francês ao seus alunos. Nem sempre, mas muitas vezes, permito-me acrescentar eu. Sobretudo quando nos colocamos perante as afirmações do Poder sem rosto, como o designava Pasolini. Portanto, e por vezes, negar não é fazer a afirmação contrária. Ou seja, não me passa pela cabeça dizer que não existe responsabilidades brutais de clero pedófilo. 

É antes recusar o modo como se configuram novas crenças que se pretendem límpidas e pudicas e transpiram principalmente uma vingança cultural, generalizações e massacre de uma instituição secularmente na mira dos que pretendem o Progresso sem o Desenvolvimento. O progresso entendido assanhadamente como ruptura — como revolução— face às convicções tradicionais sem por isso o Desenvolvimento da pessoa na sua vida pessoal e comunitária. “, o aborto, a eutanásia e fantasiosas ‘famílias” que não desenvolvem a vida de ninguém. Antes a implodem.

 

3

 

Mas retomo o Relatório. A certa altura é referido que a “Comissão Independente para
o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa” foi entrevistar os nossos Bispos. Levavam cinco perguntas preparadas. A primeira questionava o seguinte: 

 

“— Como se tornou um homem de fé? 

Percorría-se depois um roteiro por várias outras: pode-nos falar sobre a sua infância, a família e a comunidade onde cresceu? 

Como surgiu a vocação e em que lugares adquiriu formação para se tornar sacerdote ou membro de uma ordem religiosa?”(Copy paste, pg 122. Note-se o pouco rigorosa na ortografia). 

Ora, pergunto eu, a entrevista era sobre “Abuso de menores” ou servia para classificação e julgamento sociológico e psicológica do episcopado? Repete-se em todo o relatório que se acolheram as pessoas entrevistadas. Neste caso, não se está a fazer um juízo de valor sobre as pessoas entrevistadas? 

Com efeito, qual o relevo desta pergunta senão a de julgar os prelados da Igreja? 

Exagero? Veja-se o comentário que se segue sobre as entrevistas aos superiores das ordens religiosas, femininas e masculinas: 

“Se algumas irmãs tinham vestido o hábito de freira nas entrevistas, os superiores gerais (com exceção de um) apresentaram-se descontraidamente vestidos com roupa comum. Com todos, sem exceção, o ambiente criado durante a entrevista foi excelente. Ao contrário dos bispos, apesar de tudo mais formais e racionais no trato e no uso da linguagem, os superiores e as superioras gerais deixaram mais frequentemente soltar as suas emoções e dúvidas, o seu humor e, sobretudo, a sua perspetiva crítica face ao conservadorismo da hierarquia da Igreja portuguesa, na sua linguagem, na atitude de certos bispos. Apenas com eles/elas ouvimos frases como «sinto-me uma pessoa realizada», «sou uma mulher feliz»”.

 

Bom, se era tão relevante conhecer o “ambiente” em que cresceu a hierarquia, porque não utilizar o mesmo método na auto-apresentação da Comissão. 

[...] 

Que razões levaram a Comissão a passar por cima de tudo o que são direitos, liberdades e garantias, dando um passo no sentido em que a vida pública seja não só é atingida pelo populismo, que pretende que os políticos sejam substituídos pelos juízes, como agora, também, que os juízes sejam destituídos por psiquiatras. 

Sim, porque não tenhamos dúvidas: o Relatório é uma sentença.

Daquelas em relação às quais já não se pode apresentar recurso.

 

4

 

Significativa, no Relatório em apreço, a tentativa de branquear a conexão, todavia estatisticamente irrefutável, entre abusos de menores e perfis homossexuais. As afirmações ideológicas e declarações de intenção, são redundantes:

Assim na pg 75: 

 

Sabe-se que a maior parte dos abusadores de crianças são, na sua forma socialmente assumida e ainda na sua estruturação emocional, heterossexuais, muitos deles tendo relações com adultos de sexo oposto ou sendo pais de crianças. Por outro lado, a quase totalidade dos homossexuais vive a sua vida emocional e afetiva com pessoas de faixas etárias superiores a 18 anos de idade e orientação idêntica, sem que sequer se constitua esta mesma questão de abuso. Embora esta questão esteja hoje absolutamente clarificada do ponto de vista científico, ela é ainda objeto de vulgar confusão entre vários estratos das sociedades, incluindo em posições que persistem como um dogma dentro da própria Igreja que, por exemplo, nega casamentos entre pessoas do mesmo sexo ou a confissão e a comunhão a quem não tenha assumido orientação heterossexual.

 

Ora, de novo, ‘pensar é dizer não’

Mas não me acusem, para já, de ser troglodita. 

Faço, aliás, um parenteses para homenagear pessoas homossexuais que conheço e de quem sou amigo e que nada têm de pedófilas. É obvio que homossexualidade não é sinonimo de pedofilia. 

Mas é obvio, também, que há no Relatório uma preponderância de pessoas com práticas homossexuais pedófilas. E aí o relatório não é isento. 

Com efeito, não obstante o texto que acabo de citar e que tenta dissociar em absoluto estas duas práticas, por exemplo, nas pg 250 ou 271 ou 371, os episódios hediondos aí relatados são, paradoxalmente, referidos a pessoas identificadas como homossexuais.

 Mas, por outro lado, já os 4 casos contados nas páginas 223 a 227 descrevem com detalhe praticas homossexuais sem nomear a homossexualidade desses predadores.

 

Então, todo o meu propósito resume-se a condenar as pessoas homossexuais? 

Não e não.

Sem pejo, porém, relembro a tese de Pasolini, aliás um homossexual, segundo a qual a tragédia contemporânea tem que ver com um Poder [com P grande] sem rosto. Esse, Poder, digo eu, que tem conseguido colar a Igreja, o seu clero e as suas práticas rituais e instituições a uma cambada de tarados e de lugares sinistros.

 

Ora,o que o Poder pretende com isto é que da identificação da Igreja com tais horrores decorra a insignificância e impotência e o desprezo por qualquer coisa qua a mesma Igreja tenha a dizer sobre o homem e organização da sua vida em sociedade. Aborto, Eutanásia, fantasmas sobre o que é ser homem ou mulher, família tradicional ou novas configurações da mesma nascidas da perda do centro, tudo isso deixa de poder dialogar com o pensamento católico a quem não deixa de se colar a pequeníssima parte como expressiva de um todo sistémico. 

E, eis, que aí estão, de novo, à solta, velhos ressentimentos anticlericais a pedir que se “esmague a infame” Igreja.

 

5

 

E a propósito de números e % permito-me, também, dizer que não considero expressivos e suficientes os números alcançados. 34 depoimentos presenciais, 512 inquéritos online validados, a extrapolação para 4800 vítimas de abusos não é ciência, não é direito, não é justiça. É manipulação. Brutal manipulação.

 

Note-se aliás que o Relatório diz na pg. 138“Uma das questões com que qualquer equipa de pesquisa se confronta quando recolhe dados junto de uma população através de técnicas como entrevistas ou inquéritos por questionário é a questão da veracidade das respostas obtidas. Apesar de todos os cuidados postos na redação do guião, da exclusão de testemunhos manifestamente falsos, pode-se sempre discutir genericamente se quem responde está ou não a contar a verdade, ou se aquilo que afirma corresponde ao que exatamente viveu, sem construção do que é descrito como a ocorrência de «falsas memórias». Este é um tema recorrentemente discutido na literatura científica, nomeadamente na área da psicologia social, facto que, por si mesmo, constitui uma forma estruturada de corretamente enquadrar este tipo de dúvidas.

Em vez de «verdadeiras» ou «falsas», devemos ter em conta que as respostas obtidas são sempre elaboradas no quadro da relação que se estabelece entre quem pergunta e quem responde. São mediadas pela representação mental que a pessoa constrói da situação a que está a responder e é essa mesma narrativa interna que constitui o próprio resultado da inquirição.” 

 

6

 

Contenho-me no meu exame ao relatório para chegar a uma pergunta necessária e dolorosa: 

Porque é que a hierarquia se lançou a este desafio de pedir para se fazer este relatório. 

Seria melhor escondermo-nos? 

Não e não. Não sou desses. 

Não me revejo em comportamentos corporativos! Não sou de nenhuma “congregação”.

O que me parece é que, por exemplo, como em Espanha, não se deveria ter aceite fazer um inquérito desta natureza exclusivamente à Igreja Católica. Sim, os estudos de referência indicam que depois de tudo vasculhado na Alemanha e nos EUA a responsabilidade dos clérigos andará pelos 3%. 

Sim, é brutal mas não exclusivo nem predominante. E foi esse, segundo me parece, o efeito social criado com este Relatório: como se a Igreja fosse a fábrica e a sede destes horrores 

 

O que se passou então para hierarquia avançar para este Relatório. Não possuo especial informação sobre as decisões da CEP. Obviamente a pressão era muita mas permito-me lamentar 3 factos:

 

·      Cedência às elites clericalizadas: clero e leigos que pensam “mundo”. Refiro-me aos que dentro da Igreja estão mundanizados, mentalmente colonizados pelo Poder. Refiro-me aos que desejam que, no que diz respeito à doutrina, a Igreja diga o que o mundo dita à Igreja. Refiro-me, de um modo geral, ainda que com honrosas excepções, àqueles católicos de serviço que têm acesso a publicar na grande imprensa. Àqueles que de algum modo aspiram a uma versão do cristianismo descrito ironicamente pelo Cardeal Biffi a propósito do anti-Cristo: no futuro ele “será vegetariano, pacifista, bonzinho e aberto ao diálogo”.

 

·      Como segunda nota, e como agora se diz, recusa de um modelo sinodal de Igreja. Ou seja, confundir opinião publicada com o sentido da fé dos fiéis. Só gente muito mundanizada desejava este Relatório. Os fiéis-fieis, quer dizer os que vão à Missa fielmente, os que tem filhos e família, os que visitam familiares e vizinhos doentes, os que rezam, sabiam e sabem que este foi um exercício que lançou o pânico nos simples. Eles queriam a verdade, sim. Não queriam porém serem colocados de novo na arena dos novos Coliseus. Penso nos que nada sabem de sociologia e estatística. Mas que conhecem a Cruz, a dor, o perdão, o serviço desinteressado.

 

·      Por último, penso na confusão pretendida entre os abusos como abuso de poder clerical e os ardis da perversidade. Considerar a autoridade como má é abrir caminho à ditadura das minorias agitadoras, elas sim, empenhadas em reescrever um evangelho que seja aceitável por quem tem vergonha de pregar Cristo e Cristo crucificado.

 

7

 

A terminar, sobre mim mesmo, queria dizer que não vivo detrás de nenhuma muralha a bombardear a cidade. 

Por desígnio da Providência, e circunstâncias da minha vocação ligada antes demais a uma comunidade terapêutica e ao facto de ser capelão de uma prisão, penso que já ajudei — mais ou menos— dezenas senão centenas de pessoas abusadas sexualmente. Sim, sou testemunhada privilegiada de percursos de redenção, de ressurreição. Acresce que também já ajudei uma meia dúzia de pessoas pedófilas; também por elas Cristo morreu na Cruz. Não me escondo nas sacristias, não ando na rua disfarçando o meu sacerdócio. Não aceito ser nomeado reacionário por quem vive a temer a opinião dos grandes da opinião. Sou, porém, dos que considera que “a missão da Igreja não é ser credível mas acreditar!”

 

8

Termino recorrendo, uma vez mais, ao querido e grande Cardeal G. Biffi:

“Charles Journet veio ao nosso Seminário e falou-nos da Igreja. Tocou-me a sua capacidade didática, de facto extraordinária. Mas, sobretudo, fascinou-me o seu pensamento, rigoroso e vibrante, todo ele tomado de amor pela verdade de Deus e pela sua ‘Esposa’ (como ele lhe chamou desde o primeiro minuto). Particularmente era admirável o equilíbrio, a inteligência e o espírito de fé que marcavam o seu modo de afrontar o tema espinhoso da questão da existência na Igreja de santidade e pecado. Todas as contradições são eliminadas — observava ele — se se compreende que os membros da Igreja pecam não enquanto estão ligados a ela mas quando a traem. De modo que a Igreja, que não existe jamais sem pecadores, é sempre, em si mesma, sem pecado. Essa, de facto, assume em si tudo o que é santo, também nos pecadores, e deixa fora de si tudo o que é reprovável, também nos justos. Os seus confins passam, por isso, pelos nossos corações.”   

 

 

 

 

 

 

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